Uma Partitura, Várias Possibilidades
Em 2018, eu e o Tarcísio fizemos parte de um grupo de estudos, promovido pela São Paulo Companhia de Dança. Foram quatro encontros, nos quais discutiu-se o ballet O Lago dos Cisnes, obra estreada pela SPCD em novembro do ano passado. Todos os participantes foram convidados a escrever para o programa, que foi distribuído durante as três semanas em que a peça ficou em cartaz, no Teatro Sérgio Cardoso. Para mim, como bailarina e estudante de jornalismo, foi uma grande honra poder colaborar, ter meu texto publicado e lido por tanta gente! O foco foi a música de O Lago dos Cisnes, parte de um estudo que já havia feito para uma série de vídeos no meu canal no Youtube. E agora, compartilho com vocês. Boa leitura!
Uma Partitura, Várias Possibilidades
A música de O Lago dos Cisnes é, certamente, uma das mais emblemáticas do repertório clássico. Lançada em 1877, a genialidade da composição de Tchaikovsky (1840-1893) ganhou fama após a estreia da montagem de Marius Petipa (1818-1910) e Lev Ivanov (1834-1901), em 1895. Para essa versão, que se tornou a base das produções que conhecemos, a partitura original foi inteiramente revisada por Riccardo Drigo (1846-1930), que era o diretor musical do Teatro Mariinsky na época.
A exclusão de diversos temas contribuiu para deixar a estrutura da peça, antes extensa, mais equilibrada. Para se ter ideia, a primeira montagem contava com 55 músicas, e a segunda, editada por Drigo, passou a ter 42. Além disso, várias tiveram seu arranjo orquestral alterado, outras foram remanejadas e ainda há aquelas que foram substituídas. Um caso muito interessante é a criação do Grand Pas de Deux do Cisne Negro, que não existia no terceiro ato.
Na produção original de 1877, a coreografia de Julius Reisinger (1828-1892) tinha outra proposta: seguia os moldes clássicos, com entrée, solos e coda, e teria sido interpretada por Odile e pelas princesas pretendentes a se casar com Siegfried. O número não agradou uma primeira-bailarina da época e, a seu pedido, um pas de deux adicional, criado por Marius Petipa, foi incorporado ao ballet. Curiosamente, esse trecho não foi aproveitado na montagem de 1895.
Em seu lugar, Petipa utilizou músicas que já existiam no primeiro ato da peça para conceber uma nova coreografia. Parte de sua orquestração foi alterada e o solo de Odile, que seria uma valsa, foi substituído por uma obra de Tchaikovsky criada originalmente para piano¹. Com essa mudança, o primeiro pas de deux caiu no esquecimento e ficou perdido por muitos anos, até ser redescoberto nos arquivos do Teatro Bolshoi de Moscou, no início da década de 1950. Nessa época, a música enfim foi reconhecida como parte de O Lago dos Cisnes e reintegrada à partitura.
Atualmente, essa parte da obra se tornou mais conhecida como Tchaikovsky Pas de Deux (1960), de George Balanchine (1904-1983)². Além disso, as músicas que o compõem (e outros temas excluídos) costumam aparecer em diversas montagens de O Lago dos Cisnes, muitas vezes em contextos diferentes, sempre nos revelando outras possibilidades para o desenrolar dessa história atemporal.
Na montagem da São Paulo Companhia de Dança, o coreógrafo Mário Galizzi utiliza a base musical da versão de Petipa e Ivanov, com pequenas omissões, e nos mostra um novo olhar para o segundo ato do ballet. Nesse trecho, as danças dos cisnes seguem ordem da partitura original: primeiro, Odette dança para o príncipe, fazendo-o se apaixonar e, só então, interpretam o pas de deux.
São detalhes como esse que fazem a diferença e tornam única a experiência de quem assiste a esse espetáculo.
¹ O tema utilizado na variação de Odile é a música número 12.L’espiègle, extraída de “18 Peças para Piano, Op. 72” com orquestração de Riccardo Drigo.
² A obra foi remontada pela São Paulo Companhia de Dança em 2009.